O ESPANTALHO
À
amiga Rosita Flores
Hoje
não muito usado em nossas plantações, mas num tempo antigo muito presente na
roça, os espantalhos espalhavam-se por ai.
E num desses fundos de roça que ouvi o presente “causo”.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEggrtTl6_KOTWILHfWXMlZ5eNReewoKS5-FRTiFh2Jz_yp7coxg4i3ALmPLXmQdfuLHnG-pxlawRURMSu1UBca-ARkuvkIimnpvqQGWDA7Ayi5_SRty9g-N7TKXfs-PYMEjgaq_fM0KCfdd/s1600/Espantalho.jpg)
O
tal Bentinho desperta ciúmes dos rapazes e suspiros das moças que por ali passavam
ou trabalhavam na fazenda. Eis que poucos dias antes do carnaval, realizou-se
as núpcias do casal, com grande festa e alegrias dos pais, e muito ciúmes das
mocinhas, em especial de Maria Rita, a bela morena de vinte anos e ainda
solteira, que vivia a suspirar pelos cantos da casa e imaginar seu amor com
Bentinho. Maria Rita nutria pelo belo moço um amor platônico e triste, vivia a
espiar o moço de longe, seguindo-o mesmo em seus banhos de rio. Neste amor
impossível recusou casamentos e noivados.
Bem, mas voltemos a Bentinho. Passado o
Carnaval veio a Quaresma, e os moços da fazenda, arteiros como eles só,
resolveram dar uma peça no sinhozinho. Chegando a semana santa, roubaram alguma
roupas do varal da casa grande e na quinta-feira santa, estavam todos num
grande paiol fazendo os tradicionais judas. Fizeram o judas de uma fofoqueira
da cidade nhá Bertina, do farmacêutico Leôncio Zeca, que era chato como ele só,
do coronel e famoso mão-de-vaca Tico Preto e do engomadinho Bentinho, que ficou
na estica de terno branco de linho, chapéu e tudo mais! Ora,
Maria Rita era filha da nhá Tuca, lavadeira da Casa Grande e comentou o
ocorrido do sumiço das roupas do rapaz. Desconfiada Maria Rita cismou algo,
pois bem conhecia a esperteza dos meninos da fazenda nesta época de judas.
Sorrateiramente na calada da noite foi
até o paiol e logo deu de cara como o judas de Bentinho, e mesmo como judas,
bem atochado de capim ela ainda o achou bonito. Neste amor doentio, Maria Rita
cheirou o judas de Bentinho, abraçou o
boneco e ficou a imaginar seu grande amor em seus braços. Como era bem eleve, colocou o judas nas
costas e levou na sua casa. Que coisa feia, pensou ela, roubando algo na
Sexta-Feira Maior e tendo pensamentos tão mundanos num dia grande desses!
Chegou em casa e colocou o boneco em sua cama e dormiu com ele ao seu lado.
Amanheceu
o sábado de Aleluia e os bonecos foram para praça, onde foram surrados,
enforcados e antes de serem queimados como manda a tradição, foi lido o
testamento de Judas, com grande algazarra e risadas dos presentes. No entanto,
os rapazes notaram a falta do judas de Bentinho, mas dado tanto farra e tantos
judas deixaram de lado o furto do dia anterior.
Após
alguns dias e passado o dia de judas, o jeito era dar um destino ao boneco
antes que sua mãe se zangasse, a solução foi levar o judas para a roça e
finca-lo na terra, ao menos serviria para alguma coisa e não teria o fim do
fogo como os outros bonecos. Apesar de
muito repreendia por sua mãe, Maria Rita recusou-se a queimar o judas e todo dia
que iam trabalhar na Casa Grande ela avistava o espantalho novo da plantação.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjyyknJQiAj_3ix7BmzTd3KMxirx3PI4WdRdwFA3ml2NNbyw1zpuYtSH5fHt1iMykZamgIfgwfwRD82eDQhdLSFzzpsM2B1qRhcqviTAgPjMBcuaxGZXnjQH1bvmZgExu4__IIi_1pKdcYU/s320/espantalho2.jpg)
Indo
embora a certa hora, ainda cedo, mas num bom horário para donzelas, Maria Rita
antes de entrar em sua casinha lá no meio do morro, percebeu que seu belo
espantalho não estava mais lá, talvez tivesse caído num pé de vento que dera há
algumas horas, ou que os moços o pegaram de volta para suas estrepolias.
Dormindo
Maria Rita acordou assustada como a ouvir passos ao redor da casa, um barulho
de palha a esfregar pela parede, levantou acendeu o lampião e nada viu, enfim
adormeceu e sonhou com o belo rapaz do baile. Outro dia cedo ao olhar para
plantação, lá estava ele, o espantalho, arrumadinho, bonito, bem alinhado. Outra noite veio, e o tinhoso a solta, como a
tentar as pessoas, Maria Rita deu de chofre com o rapaz na beira da sua casa,
quis gritar mas não conseguiu, ficou petrificada pelo susto, e antes que
tomasse qualquer atitude foi profundamente beijada pelo rapaz que vira no baile
na Casa Grande. Assim sucederam-se esses encontros misteriosos, com o
inebriante perfume e o olhar penetrador do rapaz, tão parecido e cheiroso como
o grande amor de sua vida, o Bentinho, que agora morava distante dali.
Passaram-se
os meses e lá estava o tal espantalho, fincado na terra e que levantava certa
curiosidade, pois estava sempre limpo, impecável, conservado, nem o sol e chuva
parecia corroer suas roupas ou o enchimento do seu corpo. E foi num desses
comentários com as lavadeiras na beira do rio que a velha nhá Sunta, antiga
parteira do local, comentou que isso era mau sinal. Que não era coisa que se
prestasse fazer um judas e não queimá-lo, ainda mais na Sexta-feira Santa, dia
muito grande; pior ainda, usar um judas amaldiçoado como espantalho, que isso
poderia provocar o Tinhoso a fazer suas artes por ai. Cruz Credo !! Todos se benzeram após a fala
de nhá Sunta.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhz80iRUlArj1NNm1jNHhZ9Kj-bTICzloVFK211nPHJNip1S87O_PXf6We6yRkY4DE8M3PyOa5-wVhvGiqjhku6lCJcKrulCGoC8a1bkUdG2sLj2uv3anBWgnfWy46jU7Ujq-dW19ZW-Qx5/s1600/espantalho3.jpg)
Finda
a Quaresma, chegou novamente a semana santa, a barriga de Maria Rita enorme, e
o “moço da cidade” perambulando nos bailes do bairro, galanteando as moças,
sempre de terno de linho branco, chapéu na cabeça e cheiroso, que aparecia e
sumia como por encanto, deixando moças suspirando por aí. Maria Rita as vezes ainda recebia a visita do
seu falso Bentinho, de poucas palavras e muitas malícias.
Enfim
chegou a sexta-feira santa, e os moços resolveram fazer novos judas, e foi numa
dessas que alguém teve a ideia de pegar o espantalho na velha plantação de
milho e devolve-lo a condição de judas e finalmente dar cabo no dito cujo. E lá
foram dois rapazes na plantação, na sexta-feira santa, e tentaram, tentaram e
tentaram e não conseguiram mover o espantalho fincado na terra. Chamaram mais
dois fortes rapazes e nada, resolveram cavar ao redor, e depois de muito
esforço conseguiram derrubar o boneco que passou a exalar um cheiro fétido de
coisa podre e enxofre. Ficaram meio assustados com isso e procuraram os
conselhos de nhá Sunta, que fez uma oração forte sobre o boneco e despejou
pinga com arruda sobre o mesmo e atou as mãos do boneco com folha de palma
benta. Levaram então para a cidade e
penduraram no poste em frente a Igreja do Arcanjo Miguel.
Desde
esse momento Maria Rita entrou em grande tribulação, começaram as dores do
parto que vararam a noite e duas parteiras presentes nada resolviam. Amanheceu
o sábado de Aleluia e Maria Rita estava um tanto mais calma com poucas contrações.
As dez horas na praça da cidade começaram a leitura dos testamentos dos judas,
e a criançada começou a descer o pau nos vários bonecos, em especial no
espantalho que de uma hora para outra ficou amarelo e envelhecido com forte
cheiro de coisa velha. Maria Rita entrou outra vez nas contrações do parto,
rolava de dores, gritava, suplicava e nada da criança nascer. Começaram várias
orações no quarto; enquanto isso na cidade pauladas no judas e enfim atearam
fogo, o boneco estrebuchou na forca, incendiou, balançou, girou e booom !!! Deu
um grande estouro e todos ouviram uma gargalhada. Arrepiados todos se benzeram com o sinal da
cruz, mas só restou cinzas do antigo boneco de Bentinho.
Nesta
mesma hora Maria Rita deu a luz uma criança branca como um sabugo de milho, os
cabelos espetados e avermelhados como de uma espiga, olhos grandes e fogosos,
que logo foi entregue a avó, pois Maria Rita estava desfalecida pelo difícil
parto. Dias depois refeita e com sua criança
nos braços, Maria Rita soube do fim dado ao seu espantalho. Coincidência ou
não, o tal “moço da cidade” sumiu das festas, dos bailes e do bairro.
Maria
Rita, também sumiu da vida social, ficando somente com seu filho de cabelos
vermelhos e branquelo como sabugo, apenas ouvindo nas noites enluaradas o
barulho do raspar de palha de milho nas paredes de sua casa.
Assim
foi....
Valter
Cassalho - Dezembro/2013
Querido Valter Cassalho! Eu é que tenho que agradecer por você ser a pessoa que é. Agradeço a sua generosidade, a sua disponibilidade em ajudar, a sua receptividade, o carinho e cuidado que tem com a história da cidade e o amor ao folclore. Agradeço por ter ganhado o presente da amiga Tania Antunes, contadora de histórias admirável que me mostrou, pela primeira vez, as Histórias do Arco da Velha. E, desde então, foi amor à primeira vista. Já contei seus causos até nos CEUs, rsrs. E sempre os conto com o respeito e carinho que merecem. E cito sempre você e a Neide Rodrigues Gomes, pois os admiro muito e muito. Muito obrigada por tudo! Em breve, vou com a família visitar você na Cidade do Lobisomen. Com carinho, admiração e amizade Rosita Flores
ResponderExcluirEstou profundamente emocionada pelo seu carinho. Este vai ser mais um causo dos seus que eu terei o enorme prazer em contar pelos quatro cantos e espalhar pelos quatro ventos. Beijo grande e forte abraço.
ResponderExcluirOlá Valter, li seu conto gsotei muito desse jeitinho regional, brejeiro e cheio de mistérios... Parabéns!!
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